sábado, 6 de novembro de 2010

MEMÓRIAS DE SI, IMAGENS DOS OUTROS

A questão de um lugar do corpo nos reenvia à problematização da subjetivação e aos acontecimentos que constituem a corporalidade de nossas identidades, cuja dimensão do corpo acentua a evidência de seu prolongamento na história do presente e na questão filosófica kantiana sobre a atualidade. Portanto, análogo ao questionamento “Qual é o mundo em que vivemos?” (Foucault: 2000a), acrescento: qual é o nosso corpo nesse mundo?
À procura de traços, pistas e indícios parti da reportagem de capa, o Yoga, da revista Superinteressante, de junho de 2001, para investigar o corpo. Visando um estudo discursivo, questionei-me face ao meu corpus sobre como elementos semiológicos constituem a memória longínqua de uma imagem dada, seja recuperando imagens semelhantes em uma atualidade mais recente, seja interrogando as condições nas quais tais cenas se reproduzem e são colocadas em circulação. Portanto, debrucei-me sobre um regime que Foucault (2000b) denominou de materialidade-repetível, compreendendo um domínio de atualidade, isto é, um conjunto de representação discursiva e icônica, em relação com alguma coisa que atravesse a imagem, ou seja, uma conjuntura histórica dada, um domínio de memória.
Da idéia de memória discursiva, para qual não há discurso que não sejam interpretáveis, compreensíveis sem referências a uma memória, vali-me de J.-J. Courtine também em sua noção de intericonicidade[1], sublinhando os caracteres discursivos da iconicidade: isto quer dizer que mais que um modelo de língua, é um modelo do discurso que precisa fazer referência à imagem. Assim, a intericonicidade supõe as relações das imagens exteriores ao sujeito no momento em que uma imagem pode ser inscrita em uma série de imagens, isto é, uma genealogia como o enunciado em uma rede de formulação, segundo Foucault. Leva-se, pois, em consideração todos os catálogos de memória da imagem do indivíduo, de todas as suas memórias, ou seja, podem até ser os sonhos, as imagens vistas, esquecidas, ressurgidas e também aquelas imaginadas que encontramos no indivíduo, fatos estes que colocam, então, o corpo no centro das reflexões.
Dessa perspectiva, por um lado, observei e destaquei algumas técnicas disciplinares de coerção, cujo exercício se dá por meio de investimentos corporais pedagógico-lingüístico-discursivos, descrevendo estruturas de assujeitamento, que têm como base o desenvolvimento de técnicas de si. A disciplina pareceu-me percorrer todos os membros do corpo social ou individual no seu duplo exercício anátomo-político e biopolítico, gerenciando os menores detalhes corporais, ao mesmo tempo em que elabora um indivíduo moral e fisicamente « correto », por meio de sua retidão e formas militarmente geometrizadas. Por outro, essa disciplina do corpo, ao incluir uma imposição de técnicas corporais presentes na vestimenta, maneira de caminhar ou rigidez disciplinar como conduta de vida, evidencia as potencialidades do sujeito em exercer sua liberdade para a recriação de novos acontecimentos, à medida que ao praticar a si mesmo, se revitaliza na atualização de uma memória revisitada.
Dessa maneira, o sujeito se reconstrói e constitui identidades outras a partir da introdução da diferença do seu hoje em relação ao passado. Acredito, assim, que ao olhar o sujeito na sua dispersão em seus diversos status, lugares e posições que ocupa, engendrando um discurso, colocam-se em evidência indivíduos singularizados em suas eternas buscas heterotópicas. Para Foucault, uma nova erótica. Para Cecília Meireles, “porque a vida, a vida, a vida, a vida só é possível reinventada”.

Referências
FOUCAULT, Michel. O que são as luzes? In: Ditos e Escritos II, Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2000a
_____. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2000b
 

[1] Entrevista que realizei com J.-J. Courtine, em outubro de 2005, a ser publicada pela Editora Claraluz, e anotações de sua aula durante meu estágio na Sorbonne, Paris III, na disciplina Anthropologie du non-verbal, 2004-2005.